domingo, 8 de janeiro de 2017

Caga No Çapato! O Auto da Barca do Inferno

Já postei vários trechos de livros que eu li e achei engraçado pacas.
Hoje eu  lembrei uma parte do livro O Auto da Barca do Inferno (escrito pelo português Gil Vicente em 1531) em que um louco chamado Joane ou simplesmente Joane, o Parvo entra na barca. É um linguajar totalmente sem nexo, doideira mesmo, mas eu achei muito engraçado. Sem falar na linguagem escrita do português antigo que parece ter muitos erros de português, mas não, era escrito assim mesmo...
A história, em suma, é a seguinte: Joane morre de caganeira, chega na barca em que o Diabo leva as pessoas ao inferno e aí começa a treta.

Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:

PARVO Hou daquesta!

DIABO Quem é?

PARVO Eu soo.
 É esta a naviarra (barcaça) nossa?

DIABO De quem?

PARVO Dos tolos.

DIABO Vossa.
 Entra!

PARVO De pulo ou de voo?
 Hou! Pesar de meu avô!
 Soma, vim adoecer
 e fui má-hora morrer,
 e nela, pera mi só.

DIABO De que morreste?

PARVO De quê?
 Samicas (talvez) de caganeira.

DIABO De quê?

PARVO De caga merdeira!
 Má rabugem (raiva) que te dê!

DIABO Entra! Põe aqui o pé! 

PARVO Houlá! Nom tombe o zambuco (barquinho)!

DIABO Entra, tolaço eunuco (homem sem testículos),
 que se nos vai a maré!

PARVO Aguardai, aguardai, houlá!
 E onde havemos nós d'ir ter?

DIABO Ao porto de Lucifer.

PARVO Ha-á-a...

DIABO Ó Inferno! Entra cá!

PARVO Ò Inferno?... Eramá...
 Hiu! Hiu! Barca do cornudo.
 Pêro Vinagre, beiçudo,
 rachador d'Alverca, huhá!
 Sapateiro da Candosa!
 Antrecosto (coluna/costas) de carrapato!
 Hiu! Hiu! Caga no çapato,
 filho da grande aleivosa!
 Tua mulher é tinhosa
 e há-de parir um çapo
 chantado (enrolado) no guardenapo!
 Neto de cagarrinhosa!
 Furta cebolas! Hiu! Hiu!
 Excomungado nas erguejas!
 Burrela, cornudo sejas!
 Toma o pão que te caiu!
 A mulher que te fugiu
 per'a Ilha da Madeira!
 Cornudo atá mangueira,
 toma o pão que te caiu!
 Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha!
 Dê-dê! Pica nàquela!
 Hump! Hump! Caga na vela!
 Hio, cabeça de grulha!
 Perna de cigarra velha,
 caganita de coelha,
 pelourinho da Pampulha!
 Mija n'agulha, mija n'agulha!

Chega o Parvo ao batel do Anjo e diz:

PARVO Hou da barca!

ANJO Que me queres?

PARVO Queres-me passar além?

ANJO Quem és tu?

PARVO Samica (talvez) alguém.

ANJO Tu passarás, se quiseres;
 porque em todos teus fazeres
 per malícia nom erraste.
 Tua simpreza t'abaste
 pera gozar dos prazeres.
 Espera entanto per i:
 veremos se vem alguém,
 merecedor de tal bem,
 que deva de entrar aqui. 

Como visto, Joane era doido, mas não era malicioso e foi para o céu.

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